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terça-feira, 17 outubro 2023 19:04

Kulaya: fortalecendo os valores e coesão de uma sociedade

Imagem meramente ilustrativa Imagem meramente ilustrativa

O kulaya é uma prática que consiste no aconselhamento às mulheres que pretendam casar e tem por objectivo ajudá-las a manterem-se firmes e a saberem cuidar, construir e erguer, com balizas próprias, o seu novo lar. Na zona sul de Moçambique, kulaya significa “educar”, de modo tradicional, e é um exemplo de migração das formas de educação feminina do norte para o sul do país.

Embora o lar seja a dois, homem e mulher, o foco do kulaya é na mulher, pois se tem a ideia de que ela é a base do lar. Dentre os pontos abordados neste ritual, a atenção vai para como a esposa deve cuidar do marido, das crianças e acima de tudo, dela mesma, bem como a necessidade de, por exemplo, arrumar a cama do casal pessoalmente e preparar as comidas, pois isso demonstra respeito e submissão ao marido.

O kulaya acontece num círculo restrito, onde participam apenas mulheres casadas. No geral, são tratados assuntos relevantes de um lar, mas é a sexualidade que ganha mais terreno – a forma como a mulher deve conhecer o seu corpo, usá-lo a favor do marido e os cuidados com a sua própria higiene. A partir daqui, a noiva aprende a ter sabedoria para lidar com os futuros desentendimentos no casamento, principalmente, a saber ser submissa ao marido.

Kulaya no tempo e no espaço

Diferentemente da zona norte do país, onde a mulher aprende alguns dotes femininos nos ritos de iniciação, na zona sul, particularmente em Maputo, as conversas sobre a sexualidade, higiene (feminina) e as formas de tratamento ao parceiro são deixadas para quando ela vai contrair o matrimónio, seja ele tradicional, civil ou religioso.

Actualmente, o ritual do kulaya tem sido protagonizado por serviços prestados de um grupo de mulheres preparadas. Tradicionalmente, este acto é da responsabilidade das tias e da madrinha da noiva.

Não só, apesar de ser uma prática tradicional, há igrejas que implementam o kulaya, através de anciãs denominadas Sungukati, de forma a ajudar a nubente a ser activa no lar sexual e espiritualmente. Assim, quando uma mulher anuncia o casamento, as sungugati vão à casa dos pais dela, oram pela noiva e dão balizas de como manter um lar.

Segundo a conselheira cristã Rita Massango, no kulaya a mulher fica a saber, também, do significado de certos costumes, como o uso da capulana, que no corpo de uma dona de casa significa firmeza do lar. “Ela deve sempre amarrar bem a capulana, não deve deixar cair por nada. É uma forma de edificar o lar”, explicou.

A mulher, pela sua natureza, já cresce com a ideia do casamento incutida em sua mente. Mas, muitas delas, não têm abertura em dialogar com os mais velhos para saberem como as coisas funcionam.

Maria Mário, de 31 anos de idade, namorou o seu (futuro) marido por cinco anos e os pais nunca lhe ensinaram sobre relacionamento nem mencionaram o kulaya durante essa fase. “Namorei por muito tempo e no final, já no casamento, aprendi coisas que anularam tudo o que eu sabia e tinha feito no namoro. As formas como cuido do meu marido, de mim e da casa mudaram completamente depois de ouvir o kulaya”, confessou ela.

Maria, que só falava sobre assuntos sexuais e matrimoniais com as amigas, teve a sua primeira conversa madura ligada à sexualidade com a avó, com a qual ficou a saber do significado de amarrar bem a capulana e o valor da mesma. Desde então Maria não vive sem a peça. 

“Foi estranho vê-la falar sobre sexualidade daquela maneira, aberta. Disse-me tudo o que eu precisava saber. A minha avó deu-me um baldinho, Gillette, pente, mucume, capulana e lenço. Disse que eu devia usar todos esses objectos. Uma das coisas de que lembro ela ter dito foi que, depois do sexo, eu devia lavar-me e ao meu marido. Estranhei, mas hoje vejo a importância disso, que eu esteja limpa e bonita para mim e para o meu marido. Nunca faria o que faço se ela não me tivesse dito”, revelou.

A entrevistada falou, ainda, da relevância do preparo da mulher em tenra idade, muito antes de ir ao lar, pois tudo o que se ensina no kulaya é essencial.

Para algumas mulheres, o atraso na realização do kulaya é como uma “agressão” à mulher, pois ela sai de uma realidade básica para, de repente, saber muito e, posteriormente, praticar. “No início, os ensinamentos me limitaram de certa forma a estar mais à vontade com o meu marido, mas fui-me adaptando com o tempo”, disse Maria Mário.

Entretanto, a conselheira cristã Rita Massango é contra a submissão da mulher ao kulaya antes do casamento ou mesmo quando não está prestes a casar, porque há o risco de implementação dos ensinamentos fora do contexto proposto (o lar), como frisou a conselheira. “Fazer o kulaya cedo estraga as meninas, é isso que mata as meninas de agora, se entregam cedo e esquecem da importância de casar virgem.”

Controvérsias

Há um ponto do kulaya que é muito criticado e divide opiniões: a obrigação de a mulher esquecer a casa dos pais depois de casar. Por isso, caso tenha problemas com o marido, deve resolver com a ajuda dos padrinhos e/ou sogros. A frase dita em xichangana é “famba uya tiyisela”, que quer dizer “Vá aguentar”, pois o lar não é fácil.

“Ensinaram-me a saber me posicionar quando discuto com o meu marido. No namoro, eu falava muito, sem pensar, agora, sei abaixar a cabeça. Outra coisa, quando chega a noite, devo esquecer as diferenças e estar disponível para o sexo. Mas isso não é fácil”, confessou a entrevistada Maria Mário.  

Escrito por Joanna Mawai para Tsevele

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