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terça-feira, 17 agosto 2021 14:12

Remédio de lua: a disputa entre o conhecimento tradicional e convencional

Imagem ilustrativa da panela de barro usada para preparar remédio de lua Imagem ilustrativa da panela de barro usada para preparar remédio de lua

 Remédio de lua é um medicamento tradicional dado à criança nos primeiros meses de vida, pois acredita-se que o mesmo protege o bebé de ataques epilépticos. O nome “remédio de lua” deriva da crença ou do conhecimento de que durante as fases de transição da lua algumas crianças têm ataques epilépticos, que para o seu tratamento usa-se o remédio em questão. A prática é comum na região Sul de Moçambique, que abrange as províncias de Maputo Gaza e Inhambane, mas também verifica-se na região Centro do país.


Par entender um pouco mais a respeito desta prática cultural moçambicana, contamos com o praticante de Medicina Tradicional Filipe Guilundo, que é também Secretário Provincial da Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique (AMETRAMO) em Inhambane.

Como se prepara remédio de lua
O nosso entrevistado explica que para preparar o remédio de lua usam-se as folhas de nembenembe, uma planta que cresce em regiões férteis, com folhas verdes, flores amarelas, cuja aparência assemelha-se à da acácia. O processo inicia com um ritual que o médico tradicional faz para arrancar as folhas da planta. Depois de arrancadas são piladas, adicionando-se depois água que baste. Posto isto conserva-se num cafurro ou na concha de caracol. Depois de pronto, o medicamento é dado à criança, numa dosagem a ser prescrita pelo médico ou ancião que preparou a mistura. Filipe Guilundo também refere que as folhas podem ser piladas e conservadas em ambiente seco, fresco e sem poeira, até que um cliente apareça.

O médico explica que antes de se dar remédio de lua a uma criança, há uma avaliação a ser feita, que pode ser por um médico tradicional ou por um/a anciã/o experiente. Alguns desses aspectos são “se a criança está a espumar, chora fora fo normal, problemas de vista, entre outros”

De referir que a tarefa de preparar e administrar remédio de lua não é exclusiva dos médicos tradicionais. Existem no seio dsas comunidades, anciãos dententores de conhecimento de plantas medicinais e com experiência para o efeito.

Antigamente o medicamento era administrado à criança nos primeiros meses de vida. Mas, por consenso entre o Ministério da Saúde (MISAU) e a AMETRAMO, o medicamento é actualmente dado depois dos seis meses de idade.

Uma receita diferente
Uma receita diferente do remédio de lua é-nos apresentada por Elisabeth Chissico, casada, mãe de duas filhas, uma de dois meses e outra de três anos de idade.

A nossa entevistada explicou que está neste momento a administrar um remédio feito a partir da mistura de fezes de elefante e de cannabis sativa, vulgo suruma, em quantidades não especificadas. Ela acrescenta “Preparei pessoalmente porque aminha sogra não mostrou muito interesse. E como vi que a criança a cada dia assustava mais acabei procurando e passei a dar”.

Administração do remédio de lua
Filipe Guilundo refere que quem deve tomar o remédio de lua são, sobretudo, os rapazes, pois “existem lombrigas nos rapazes que não morrem com remédios convencionais.”

Para administrar o remédio na criança, no primeiro dia é o praticante que dá. Já na casa da família, se o bebé for menina quem dá é um rapaz, se for um menino quem dá é uma rapariga, menor de 18 anos. Ou uma idosa que já esteja na menopausa. Sendo esta última a mais recomendada tradicionalmente. Dá-se a troca dos sexos pois alega-se que o medicamento é mais eficaz. E “este deve ser dado no portão de casa, como é tradicionalmente recomendado”.

Primeiro dá-se o medicamento depois dos seis meses de vida durante quatro dias, depois a mãe seca as folhas do remédio e volta com o medicamento para que o praticante de medicina tradicional faça um ritual. O remédio de folhas depois de tomado pela criança deve ser devolvido para fazer o ritual, “do contrário a criança não fica melhor do seu problema”. Depois prepara-se outro remédio com as raízes do nembenemde que se deverá administrar meia colher de chá por dia, de manhã e à tarde durante um mês.

Sem acompanhamento profissional, a dona Elisabeth menciona que dá meia colher de chá do remédio pela manhã, a mesma quantidade de tarde e de noite. Refere que está a dar remédio de lua à filha mais nova desde quando ia completar um mês de idade, porque ela assustava muito. E explica “agora que dou o remédio de lua minimizou. Há dias que não assusta mas há dias que sim.”

Efeitos do remédio de lua na criança
Filipe Guilundo refere que o remédio de lua serve para combater lombrigas, que se a criança crescer com elas a mesma pode ter convulsões em que “por vezes cai, tendo o problema que no hospital chamam de epilepsia. A epilepsia começa com isso, quando a pessoa não cumpre com o remédio de lua no princípio acaba tendo essas consequências”, acredita o Sr. Guilundo.

Para a Dona Elisabeth, dar remédio de lua à sua filha é uma questão de mentalidade e admite “Como mentalizei que dando remédio de lua a criança não assusta, acho que é por isso que acho que o remédio está a fazer efeito”.

Há efeitos adversos, entretanto, associados à toma do remédio de lua, como menciona a Dra. Dalila Rego, Pediatra no Hospital Geral José Macamo, na Cidade de Maputo. As complicações vão desde “parasitoses, complicações no intestino, intoxicações com convulsões”, entre outras. E ainda acrescenta que “o grande problema do remédio de lua é que geralmente não se sabe quais são os componentes e as quantidades de cada planta usada para produzir.”

Na sua experiência de trabalho com crianças a Dra. Dalila afirma “não posso recomendar um remédio que não tem a descrição exacta do que está nele, quantos miligramas de uma determinada planta compõem o remédio. Portanto, não posso prescrever um medicamento que poderá causar interferência com um medicamento que a mãe possa estar a dar que eu não sei o que é”.

Uma experiência diferente
Laura Lipezane é casada, mãe de sete filhos com idades compreendidas entre os 16 e 35 anos de idade. Na sua experiência maternal, dona Laura confessa “Nunca dei o remédio de lua a nenhum dos meus filhos, dos sete que tenho”. Ela acrescenta que existem más interpretações que as mães fazem quando os bebés têm convulsões durante os seus primeiros dias. Quando isso acontece “associam a epilepsia às fases de transição da lua”.

Uma das motivações que fez com que a dona Laura não desse remédio de lua aos seus filhos é porque não tem dosagem, “apenas fervem para a criança e dão sem a prescrição médica”. E argumenta que por vezes é o próprio medicamento tradicional que causa convulsões na criança por se tratar de um medicamento em excesso, e em alguns casos causa a morte. “Por isso eu tinha muito medo de dar o medicamento à criança” admite.

Dona Laura reconhece que não foi fácil resistir à pressão da sociedade. Relembra os momentos de pressão social que sofreu por não dar remédio de lua aos seus filhos, mas explica que conseguiu suportar tudo pois “a minha sorte é que eu havia casado com um enfermeiro, e me aconselhou a fazer o acompanhamento da criança no hospital”.

Por fim, a dona Laura admite “Não digo que medicamento tradicional não sirva, o problema é a medida do medicamento que as pessoas preparam para dar a uma criança recém-nascida”.

Escrito por Vanila Amadeu para Tsevele

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