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terça-feira, 06 julho 2021 12:28

Kutchinga: um acto de “purificação” da viúva

Fotografia meramente ilustrativa Fotografia meramente ilustrativa L Masina/VOA

Kutchinga, em xichangana e outras línguas do sul de Moçambique, ou Kupita-kufa, em ci-sena, que em português significa levirato, é uma cerimónia de purificação da viúva que se pratica (actualmente em menor escala em algumas regiões e comunidades – tende a entrar em desuso) quando uma mulher perde o marido. O acto consiste em manter relações sexuais e/ou casamento da viúva com o irmão do seu falecido marido.

Alega-se que o ritual sirva para manter a “herança” do falecido na família, não se dispersando como aconteceria se a viúva se casasse com uma pessoa fora da família. Apesar de já estar em desuso no país, por décadas esta prática deixou marcas indeléveis na vida dos envolvidos, tanto mulheres como homens (casos havia em que o único irmão do falecido era ainda muito jovem e sem experiência de vida conjugal, mas por força das práticas da sua comunidade, era obrigado a assumir a “herança” do irmão, ignorando-se a sua liberdade de escolha e os seus sonhos).

Filipe Guilundo, Praticante de Medicina Tradicional na província de Inhambane conta-nos como se dava o processo. Ele explica que o kutchinga era feito passados seis meses ou um ano após as cerimónias fúnebres de um ente querido. “As tias da família faziam uma reunião e decidiam quem deveria ser a pessoa a tchingar a viúva e, portanto, ser o sucessor do falecido”.

Uma experiência amarga

Albertina Madivala, carinhosamente tratada por Cacilda, é uma idosa de sessenta e um anos de idade, natural de Cumbana, província de Inhambane. Mãe de sete filhos, actualmente reside na cidade de Inhambane. Ela conta-nos como foi a sua experiência quando teve de passar pelo Kutchinga.

Tudo começou quando perdeu o marido em 2008. Um ano depois, isto em 2009, seus filhos decidiram procurar por um praticante de medicina tradicional para orientá-los na cerimónia do kutchinga. Por consenso familiar decidiu-se que a dona Cacilda deveria fazer o kutchinga com seu cunhado, irmão do marido, que na altura já era casado. “Quando fui comunicada que devia fazer o acto chorei muito, porque não queria. Mas não tinha opção, tive que fazer”. E acrescenta “Eu não tinha como negar porque a família toda estava a favor do acto”.

No dia da cerimónia, a dona Cacilda conta que com a chegada do médico tradicional, este preparou uma mistura de raízes que depois foi usada para colocar nas palmas das mãos através de um instrumento próprio (algo que se assemelha à vassoura de coqueiro manualmente fabricada).

“Foi como que uma violação”

Findo o processo, levou-se uma roupa do falecido marido e colocou-se na lixeira, enquanto ela e o cunhado eram conduzidos para o quarto onde deveriam manter as relações sexuais. Levaram consigo um balde de água e uma panela de barro. No quarto, como era de se esperar, eles fizeram o acto sexual. A dona Cacilda relembra os momentos e partilha “Senti-me mal, pois não houve conversa, foi como que uma violação. Senti dor, até chorei pois estava a ser submetida a fazer coisas que eu não esperava fazer.”

A nossa entrevistada acrescenta “Depois do acto lavamos nossas partes íntimas com água do balde. A água usada para lavar as partes íntimas devia ser depois colocada na panela de barro”. Findo o processo, levou-se a panela de barro para a lixeira onde estava uma peça de roupa do falecido previamente colocada.

Na manhã seguinte, todos os familiares foram conduzidos para a lixeira, para fazerem um “banho” que consistiu em que eles metessem os pés na panela de barro, que continha a água que os envolvidos no kutchinga usaram para lavar suas partes íntimas. Posto isto, toda a família foi dispensada. Sobre a experiência, a dona Cacilda conta “só passei pelo kutchinga porque me disseram que seria para o bem dos meus filhos em casa. Para não se dar o caso de alguém ficar doente e alegar-se a não realização cerimónia”.

Buscando uma solução pacífica

Passados cinco dias, no sexto, o cunhado foi orientado a fazer um ritual na frente da casa onde aconteceu o acto. O acto envolvia matar galinhas a paulada. No mesmo dia foi preparado maheu, uma bebida produzida à base de farinha de milho, água e açúcar. Este seria para alimentar os antepassados, segundo a explicação dada.

Finda a cerimónia, a dona Cacilda refere que não viveu com o cunhado como esposo, apesar da família ter insistido para tal. Ela explica que temia ser morta pela concunhada, com recurso à magia negra, sob acusação de lhe ter roubado o marido. “Depois do acto fui falar com a esposa do meu cunhado, para clarificar que eu não tinha interesse em me tornar esposa do meu cunhado. Se fiz o kucthinga foi pela tradição, não por livre vontade.”

Kutchinga, uma prática em desuso

Como qualquer outra prática e norma sociais, kutchinga vem perdendo espaço na sociedade Moçambicana. Filipe Guilundo conta que por volta da década de setenta já havia casos de pessoas que recusavam a envolver-se na prática. Nestes casos, “podia dar-se o caso de as pessoas que recusavam desenvolverem problemas de saúde, que, para a sua eliminação, seria necessária a intervenção de um praticante de medicina tradicional para “lavar” a pessoa e sair da confusão. Depois escolhiam outro”. E ainda acrescenta que “era uma prática obrigatória que, caso não se fizesse, era considerado uma desobediência”.

A cerimónia de kutchinga era geralmente orientada por um praticante de medicina tradicional já maduro ou um idoso que já passara por isso, acrescenta o Sr. Guilundo. Entretanto, devido a exposição das pessoas envolvidas às doenças sexualmente transmitidas, a prática foi banida, num acordo entre a Associação de Médicos Tradicionais de Moçambique (AMETRAMO) e o Ministério da Saúde (MISAU).

Actualmente os praticantes de medicina tradicional usam raízes para fazerem tratamentos para substituir a relação que se devia ter entre a viúva e o irmão do falecido marido. Como conta o nosso entrevistado, mantém-se toda a cerimónia, apenas substitui-se o acto sexual por banho de raízes que deve ser dado à toda a família na lixeira. “O banho consiste em que cada membro da família lave a cara, as mãos e os pés com o remédio”.

Escrito por Vanila Amadeu para Tsevele.

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